Olá!
Adolescentes e crianças, por favor: parem a leitura deste texto por
aqui. O texto expressa conflitos profundos entre dois personagens, pai e
filho: há aquilo que primeiro se deva entender para que depois se possa
entender conflitos como os de que trata o texto. Se for o caso, por
favor, pare a leitura por aqui: tudo no Mais Elevado Espírito. Último
ponto para parar a leitura por aqui.
-Fala pra mim: em que mundo você vive? Fala pra mim!
Antes que o filho começasse a tentar responder, o pai emendou:
-499
reais! Quatrocentos e noventa e nove reais (separando claramente as
palavras e dando tapas na mesa, e levantando-se da cadeira a seguir) que
NÃO PRECISARIAM TER SIDO GASTOS!
-Você
sabe? Você sabe o quanto eu tenho de trabalhar para ganhar este valor?
(Sentando-se novamente e tirando uma caneta do bolso, fez rapidamente um
cálculo no primeiro papel que viu à frente) Aqui: um dia e meio! Um dia
e meio jogados fora pela tua desatenção!
-Mas pai, eu não vi...
-Uma pedra daquele tamanho no meio da rua, e você não viu... Não viu, e ainda passou com o pneu do carro por cima da pedra.
-Mas, pai, eu... tava a 40 por hora, mantive a direção e parei o carro (disse, assustado, o filho).
-A
questão não é esta: desatenção (disse o pai, separando as sílabas de
"de-sa-ten-ção"), e 499 reais que não precisariam ter sido gastos. Olha
aqui: você teria este dinheiro se fosse para você pagar?
Não... (respondeu o filho, enquanto se afastava do pai). Mas eu pego emprestado com a minha mãe.
-E vai pagar à sua mãe como? Pegando emprestado comigo, por um acaso, para pagar a ela?
-Quando as coisas derem certo comigo, eu pago...
-Ah, "quando as coisas derem certo"... Fala pra mim: em que mundo você vive? Acorda, e vai procurar um emprego!
-Mas pai, eu trabalho...
-E o que você faz? O que você faz é voluntariado, não é trabalho.
-O fato é que eu tenho de estar lá, pai (disse o filho, tentando encontrar convicção).
-Pois arrume outra pessoa para estar lá, e você vai trabalhar.
-Mas...
pai, um dos motivos de eu ter deixado o meu trabalho é que eu tinha de
estar lá, pai (disse o filho, com descontentamento).
-Já
vi que não tem conversa (disse o pai). Faz o seguinte: eu vou trocar
este pneu porque eu preciso viajar amanhã cedo; amanhã cedo eu saio para
viajar. E você, para procurar um emprego: do contrário, as fechaduras
de casa vão ter sido trocadas quando eu tiver chegado. Dizendo isto,
pegou as chaves e os documentos do carro, e saiu. O filho, sem palavras,
sairia minutos depois do pai.
O
pai, dirigindo agressivamente, levou o carro à oficina especializada em
pneus, de um antigo conhecido. E, lá chegando, foi recebido com um
sorriso, ao qual imediatamente o conhecido (não se viam há um bom tempo)
emendou: "Não, não precisa me dizer nada"
-Pois é (disse o pai): as coisas não vão bem mesmo. Você já percebeu.
-Seja o que for, esquece isto um pouco (disse o velho conhecido): deixa o carro aí e vamos tomar um café.
-Precisa
trocar o pneu dianteiro esquerdo (disse o pai ao amigo): da mesma marca
e do mesmo modelo, 499 reais, vi no seu anúncio. Você me parcela isto?
-Claro.
Vamos tomar um café (disse o amigo, deixando a ordem de serviços com o
responsável). E foram os dois falar da vida que se leva.
-Me
separei da minha esposa, tou com um monte de problemas por fora, e se
não bastasse isto, O diretor-executivo ainda chamou todo mundo e disse
que estão insatisfeitos com os resultados, e que vão trocar a equipe
inteira se isso não mudar; e, quando pedi a palavra para dizer o quanto e
como tinha sido difícil conseguir estes resultados nestas condições,
ele olhou para mim, só disse: "a equipe inteira", virou as costas e
saiu. O dinheiro não tá dando, e apertam ainda mais o que já está
começando a necrosar de tanto que apertam... Você sabe...
-Sim, eu sei (disse o amigo).
Enquanto
isto, o filho caminhava pelas ruas sem saber ao certo onde ir, uma vez
que aquelas atitudes e palavras do pai realmente o deixaram
desorientado. Sentindo muito tudo aquilo, e atormentado pela dúvida
acerca do que até há pouco era tão certo, pensou, ao esperar para
atravessar aquela via movimentada e de tráfego insano: "Fechar os olhos e
não chegar do outro lado".
Chegou
a fechar os olhos, porém refletiu sobre o efeito que "não chegar do
outro lado" teria sobre pessoas as quais gostavam dele, e mesmo sobre
pessoas para as quais ele era importante e nem sabia. Decidiu esperar
pelo sinal verde, e assim, chegou ao outro lado da rua. E, dali, foi
para uma praça a qual ficava a alguns quarteirões do ponto onde estava.
"Fala pra mim: em que mundo você vive?" permanecia ainda sem resposta.
Pensou-se inadaptado à vida, inapto ao "mundo real", e coisas do tipo.
Porém, percebeu um sentido em sua existência, o qual vinha das pessoas.
Sentou-se no
banco da praça e fez uma silenciosa oração, na qual disse tudo.
Na
oficina especializada em pneus, o responsável entregava o serviço
concluído. O amigo pegou o pneu que fora retirado, e observando-o,
perguntou ao pai: "Você vai viajar para onde amanhã cedo?"
-Vou para Santanápolis do Sul.
-É
perto, mas você sabe que é uma estrada de grandes buracos. Vai com
cuidado (disse o amigo). Entregando o pneu ao pai, falou: "Agradece.
Calcule a probabilidade de uma bolha destas aqui estourar quando se
passa por um buraco igual aos da estrada de Santanápolis do Sul: você
sabe, a pressão tende a sair por onde ela encontra menor resistência.
-Com licença, preciso fumar um cigarro (disse o pai, abaixando a cabeça e virando-se em direção
à
porta da oficina. Encontrou não muito longe dali um lugar, sentando-se
no meio-fio. cotovelos apoiados nas pernas e colocando as mãos entre os
cabelos). Enquanto acendia o segundo cigarro com a brasa do primeiro,
passou por ali um carro tocando uma música da qual se ouvia os versos
"Desculpe, estou um pouco atrasado; mas espero que ainda dê tempo de
dizer que andei errado, e eu entendo". Foram mais seis cigarros de
reflexões profundas: nem ele mesmo se lembrava da última vez em que
havia chorado. Pegou o telefone celular e tentou ligar para o celular do
filho. O filho não atendeu. Resolveu então enviar uma mensagem de
texto: "Fui homem para fazer o que eu queria, do jeito que eu queria.
Sou pai, tenho este dever: preciso te dizer que errei, e que aprendi, e
também te ensinar o que aprendi". à mensagem, o filho respondeu com
outra mensagem: "Em meia hora estou em casa". O pai, retornando à
oficina, pegou o carro e disse ao amigo que passava depois para acertar,
ao que o amigo respondeu: "sem pressa". Em vinte minutos, o pai estava
em casa. E, quando o filho abriu a porta, imediatamente disse o pai:
"Errei". O filho o abraçou, e choraram juntos. E o pai começou a falar
de seus erros. Disse: "Não era ela a errada, hoje eu sei. Pra falar a
verdade, não é de hoje que eu sei. Um dos motivos da nossa separação,
talvez o principal, foi justamente este: o lugar para onde meu dinheiro
ia. Eu considerava que eu bancava a casa, e era homem: logo pensava não
dever satisfação nenhuma à sua mãe. Realmente, para lá vai boa parte do
meu dinheiro. Você nunca soube, mas faz um bom tempo que é assim. Ao
menos até aqui foi assim". O filho ouviu em silêncio, e disse: "Ela não
está com ninguém". O pai completou: "A vi por estes dias. Está muito
mais bonita do que quando estava comigo. Era eu, e não ela: faz este
favor pra mim: conta pra ela o que você me viu fazer". "Tá bom", disse o
filho. E começaram a falar da vida que se leva. "Amanhã vou chegar um
pouco atrasado ao evento em Santanópolis do Sul: vai estar todo mundo da
empresa lá, eu aproveito para anunciar discretamente a minha demissão.
Quem faz o que eu faço e como eu faço, filho, não fica parado. Se nem
conversam comigo, por que empregar meu melhor por eles? Me perdoa,
filho, pelo mundo no qual eu vivia. Pelo menos por uns dois dias, eu
quero conhecer o mundo em que você vive. Quem sabe a gente não consegue
profissionalizar a gestão sem a perda do caráter da iniciativa? Fala pra
mim: será que um dia a gente consegue que não haja mais?". Um abraço!
segunda-feira, 27 de junho de 2022
"No meio do caminho, tinha uma pedra".
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